Memórias póstumas

Não, não morri ainda. Ainda tenho uns 70 anos pela frente. Apenas estou escrevendo para me lembrar lá na frente, antes que desintegre mais a minha já tão afetada memória. Sofro de alguma síndrome que me faz esquecer das coisas, datas, pessoas, ações, momentos, tudo. As pessoas pensam que sou apenas um idiota, abandonando-as de um jeito que as torne órfãs de minha presença.


Não sou idiota. E se um dia falei contigo, pode ter a enorme certeza que está guardado(a) nessa salinha da minha memória, a qual não encontrei a chave (muito menos o caminho). Às vezes topo com a chave no corredor da minha paciência, mas não encontro a localização. Às vezes esbarro na porta desta sala, nas infinitudes de minhas memórias, e acabo lembrando que deixei a chave nalgum outro lugar dos meus neurônios.

Raras vezes, tenho a feliz coincidência de levar a chave comigo. Esbarro na porta e abro-a. Lá dentro, todas as pessoas, coisas, datas, ações e momentos seguem em fila para a sala de armazenamento.

Algumas se perdem no caminho, mas muitas salvam-se. É assim que entro em conflito comigo mesmo - e tem sido assim todos os dias de minha existência.

Labirintos são a minha constituição. Portanto, facilmente me perco nas entranhas do meu pensar.

Reforço mais uma vez o pedido desta humilde pessoa: se tu te lembras de mim, eu lembrarei de ti.

Mesmo que esteja lá na maldita salinha perdida da minha memória. Não te abandonei, não te esqueci.

Saiba que me esforço tanto para encontrar-te durante todas as horas do meu dia. Se não encontro, amanhã esqueço o que estava fazendo e a procura começa do zero.

Saiba que, um dia, decorarei o caminho.

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