Perfil: Rivera

Uma aposta em Rivera

Uma mulher de cabelos crespos soltos desce de um táxi na esquina da avenida, ajeita a saia levemente e some da rua em passos de salto alto, contando o bolo de dinheiro que recebeu do taxista. Uma brisa quente corta o ar da Frontera de La Paz. Subindo a Boulevar 33 Orientales, lá no alto, encontra-se o Casino. Os passos ecoam pela escuridão da avenida mal iluminada. Logo na entrada, o luminoso indicando o lugar salta aos olhos, com um colorido que mais parecem penas de pavão – com misturas chamativas de rosa, amarelo, roxo, vermelho e azul.

A entrada é simples. Para jugar, sólo em pesos, diz um senhor alto e moreno perto da porta de vidro. Um carpete vermelho com detalhes em azul e amarelo serve de cenário. O local mais parece um motel de beira de estrada do que um cassino de verdade, comparado ao Stratosphere Las Vegas. Quatro pilares revestidos com espelhos situam-se entre as máquinas caça-níqueis e as roletas. Os crupiês recebem as apostas. “Apostas encerradas!”, diz um crupiê careca, alto, mais ou menos magro, enxugando a testa suada com um lenço amarelado. Veste uma camisa social branca com uma gravata borboleta preta. Sapatos pretos lustrosos. A roleta gira e gira e pára 25. O ganhador havia apostado sobre a linha, ou seja, ganharia também se o preto 24 apontasse na roleta. Dois senhores de meia idade e estatura média na ponta da mesa seguram baldes – que se parecem muito com copos de refrigerantes comprados em estádios de futebol, só que levemente maiores –, e dentro deles muitas fichas para as apostas.

Do lado direito das três roletas, a mesa de blackjack permanece imóvel, fechada, sem vida nem apostadores. Os fantasmas circundam as máquinas e mesas abandonadas: ali já foi palco de perdas e ganhos, sorte e azar. Ao fundo do salão, percebe-se uma escada em espiral com corrimão dourado. Um senhor apóia-se sobre ela e observa a todos atento, com um olhar cansado. Nem percebe que, embaixo das escadas, em um sofá bege e empoeirado, há uma mulher. Leva o copo de uísque, provavelmente sem gelo, à boca. Seca suavemente os lábios no guardanapo da mão esquerda. Descruza as pernas e as cruza de novo, só que para o lado contrário ao que estava antes. Esconde seus quarenta e poucos anos com uma forte base facial e um batom de cor avermelhada. No copo, a marca dos lábios está fresca.

Usa um vestido longo – uma fenda desce do meio das pernas, na altura dos joelhos, deixando os dedos dos pés desnudos - com manchas douradas e pretas e um bolero sobre as costas. Com cabelos pelos ombros, ressecados, mas ainda briosos, ela junta-se à observação do primeiro. Uma cena de filme hollywoodiano. Soma-se a isto uma loira na máquina de caça-níqueis. De vestido branco, colado ao corpo e mostrando as suntuosas curvas proeminentes, ela parece confusa. Uma aparência arrebatadora em um antro de personagens antiquados. Olha para os lados e parece procurar uma resposta. Olha de novo o buraco na máquina para inserir a moeda. Consegue achar o que procurava. Em seguida, o homem careca de camiseta azul ao seu lado coloca uma mão sobre seu ombro e inclina a cabeça perguntando “Está tudo bem?”. A loira irresistível acena com a cabeça e afirma que sim, mas depois se corrige e declara seu intento. Queria apostar e não sabia como. O homem colocou a moeda na fenda e fez a aposta. Passou a mão nos cabelos negros e, sem que a mulher percebesse, perdeu-se na primeira curva à esquerda. A batida foi com os olhos, mas deixaria seqüelas naquele que vestia a camiseta de manga comprida azul dobrada até os cotovelos. A loira sorriu. Duas apostas e a noite a recém começava. Perto dali, o caja exibe uma placa: “Se ruega al publico contar el dinero antes de retirar-se de ventanilla”. Longa brisa quente e os apostadores desta baixa Las Vegas gastam seu dinheiro à vontade. Ao sair, descendo a Boulevar 33 Orientales, o som do vento junta-se ao das máquinas ininterruptas do casino.

A noite de Rivera não condiz à realidade do frenesi das compras. Os free shops, que são considerados os braços da economia da Frontera de La Paz, fecham suas portas em torno das 20 horas. Logo cedo, às oito horas da manhã, pessoas aglomeram-se aos poucos em frente às lojas e aos free shops. É difícil não notar a ansiedade no rosto das pessoas, atraídas pelos preços relativamente baixos. O clima da manhã é nublado com pouco vento. Calcetines, dez calcetines por cinco reales. “Meias, dez meias por cinco reais”, ensaia uma mulher em uma longa saia vermelha. Elas estão por toda a parte, as meias. O sentimento de ser abordado por pessoas que as vendem é muito parecido com o de ter a mão lida à força pelas ciganas da praça Montevidéu, em frente ao Paço Municipal de Porto Alegre. O traje é quase o mesmo: saias longas, cabelos presos e compridos, estampas coloridas e sandálias.

Um uruguaio passa cantando uma canção local e tomando o tererê matinal – uma bebida parecida com o chimarrão, só que gelada. Os prédios são baixos e de arquitetura antiga, não maiores que dois andares. Uma faixa cruza a avenida Sarandi. “Homenaje a Wilson – hablarán Jorge Gandini y A. Saravia – Jueves 13, Hora 20, Club Uruguay”, lia-se. Muitas motos passando na rua e estacionadas. Os carros têm pouco lugar para estacionar, a maior parte é reservada aos ciclomotores. Ter condução é fácil: as motos mais baratas custam 800 dólares.

Turistas que vão a Rivera procuram três objetos: perfumes, bebidas e alfajores. A lista tem mais itens como ar-condicionado, eletrônicos de outros tipos, câmeras digitais, roupas, tênis etc.

Já dizia o gaucho Martin Fierro, personagem do poema homônimo de José Hernández:

“Uno es el sol, uno el mundo,
sola y única es la luna
ansí han de saber que Dios
no crió cantidá ninguna.”
Se fosse real, e não um personagem, o gaucho criado por Hernández poderia muito bem ser um fiscal da Aduana, que controla o movimento de entradas e saídas de mercadorias para o exterior ou dele provenientes. Ao passar por uma pedra branca e retangular situada no meio do cruzamento, não se está mais em solo brasileiro. O obelisco da Praça Internacional, na Frontera de la Paz, demarca a união das cidades de Rivera e Santana do Livramento. Pessoas passam de lá para cá sem nenhum impedimento, pois Rivera possui uma curiosa conurbação binacional.

São em torno de sete horas de viagem até o paraíso consumista. A lua quase nova desponta no céu repleto de estrelas. No ônibus, a maioria dorme. Pouquíssimas pessoas vidram o olhar para fora, para a escuridão. Ultrapassagens perigosas põem em risco a vida dos passageiros. Mas ninguém percebe. No silêncio do motor, apenas a porta do banheiro abre-se seguidamente. Modorra, torpor. Os olhos fecham.

Parada no “Pastel de São Gabriel”. Quase ninguém desce. Os olhos semicerrados não se acostumam à luminosidade e voltam a se fechar. A madrugada vai alta e dentro do ônibus apenas escuta-se o ronco dos motores individuais. Sinfonia para os ouvidos dos insones. Insônia para a sinfonia do sono.

A guia de cabelos com mechas loiras se levanta e dá boas-vindas a todos os presentes no ônibus. Ajeita levemente o casaco e diz ser experiente nesta rota. Em seguida pergunta: “Onde vamos fazer a parada?”. Em uníssono, os viajantes respondem: “Pastel de São Gabriel”. Quem não conhecia o petisco teria a chance de conhecer. O motorista dá a partida, o ônibus chacoalha. Bancos são inclinados para melhor conforto dos consumistas em busca de mercadorias. Não confunda com muambeiros, estes cá vão por bel prazer de comprar badulaques para si mesmos.

Malas, etiquetas. Etiquetas, malas. Checagem. Nomes na lista de passageiros. Um a um, todos vão se acomodando em seus lugares. Alguém pergunta para a guia quanto o dólar estava cotado em Rivera. “Acho que um R$ 1,70”, responde. E logo a conversa gira em torno de lojas a serem vistas por lá. Um perfume de grife Hugo Boss aqui no Brasil custa cerca de R$ 250. Na Frontera de La Paz, os preços são atrativos – cotação de R$ 1,68 - e ao mesmo tempo ludibriantes: cheiros por apenas R$ 80.

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