Conto: A calçada mágica (parte 2)

Sentiu passos atrás dele e um som meio fraco. Parecia alguém falando com ele, Seu Nicanor, quero minha cerveja! Mas o que vocês estão olhando? Dá pra se virar pra mim enquanto eu falo com o senhor?. E de repente, silêncio. Olhou de soslaio e viu mais um queixo caindo e mais um par de olhos vislumbrando aquela calçada. Parecia magia mesmo. A calçada fazia ondas. Ela surfava em sua superfície. Os juízes levantavam as placas com as notas: 10, 10, 10, 10 e 10.

Nota máxima. E do outro lado, os aplausos. A platéia adorava. Seu Nicanor, refugiado em seus pensamentos, conseguiu escapar da mágica por um segundo – a tempo de ver o Tino parado (embasbacado), e ver também o Rogerinho chegando. O Rogerinho sempre pedia uma porção de fritas após o trabalho na corretora de seguros. Sempre reclamando do emprego e da esposa. Mais uma vez um zumbido no ouvido abafou a voz de Rogerinho. Seu Nicanor, vê uma porção de fritas. Seu Nicanor? Seu Nicanor, tudo bem com o senhor? Tino? Mas o quê... E tudo ficava silencioso. Vagarosamente, seu Nicanor, com o canto dos olhos, viu Rogerinho transformar-se em estátua. Isso, pareciam estátuas. A medusa do vestido rosa tornara-os em pedra. Apenas seus corações batiam firmes e fortes. Como que uma caldeira alimentada com mais carvão.

Os minutos se passaram. E como era final de tarde, período de maior movimento da tenda, os fregueses não paravam de chegar. Só que, assim como os outros, acabavam encarando a medusa e ficavam então a seu dispor. Pedras à procura de uma flor para enfeitar sua rugosidade. Toda a freguesia parou para olhar. E assim, ficar na espera. À espera de um sinal. Correriam feito loucos, em busca de seu prêmio. Correriam até a outra margem daquele rio de carros que cortava as duas margens. A aglomeração era tanta que um carro também parou para perguntar aos estáticos o que se passava. E quando, com um leve menear da cabeça, apontavam para a outra calçada. Os motoristas, um a um, não desmontando de seus cavalos, iam parando e sendo intrigados pela magia da bela.

A rua que não tinha semáforos estava agora engarrafada. Mas não era um engarrafamento comum. Os motoristas não buzinavam. Um que outro arriscava buzinar, mas o som era cortado ao meio. E assim a bela do outro lado da rua ia parando tudo à sua volta. Um mundaréu de gente ali espremido pra sentir aquela magia. A bela, firme ao celular, não olhava para os lados. E se olhasse ia se espantar com tanta gente parada daquele jeito. Era inevitável. As narinas de seu Nicanor dilatavam-se para sentir o perfume da bela.

O intrigante era que todos esperavam algo. Seu Nicanor agora pensava na espera. À espera de um olhar da bela. Morreria hoje, enfartado. Não agüentaria uma encarada de sua medusa bela. Até os pingos de suor da testa de seu Nicanor foram parando, aos poucos, e estacionando na face. Os pingos também viam. Todo seu corpo via. A bela mais bela que todos os olhares pudessem vislumbrar. E estava logo ali, do outro lado da rua. Na calçada mágica, que mantinha a todos prisioneiros da beleza da medusa. A bela desligou o telefone. Batia os dedos de leve nas pernas. E isso fazia a platéia delirar. Os dedos mostravam que ela estava nervosa. Seria com eles, a platéia? Com a outra mão, ela afagou os cabelos negros e lisos. Seu Nicanor apenas inclinou mais sua cabeça para o lado direito, acompanhando o movimento das mãos da bela. Ela, enquanto caminhava nervosamente de um lado para o outro, viu arrebentar a tira que prendia a sandália a seus pés. As mãos deslizaram até o pé, perfeitamente delineado, e retiraram a sandália, deixando seus pés desnudos.

Agora, o par de sandálias que antes revestia seus pés, pousava em suas mãos. Seu Nicanor queria sair correndo e comprar uma outra sandália, ou até mesmo um sapato chique para a bela. Mas não podia. Estava enfeitiçado. Tentou gritar, mas só conseguiu gemer. Se ao menos eu não fosse de pedra, pensou seu Nicanor. Com o vento, o perfume da bela chegou às suas narinas e o envolveu ainda mais. Seu Nicanor venderia a tenda, largaria tudo. Tudo pela bela do outro lado da calçada.

Foi então que seus olhos viram. E de todos os presentes àquela cena bizarra. Um homem. Não enfeitiçado. Ela o olhava. Seu Nicanor não entendia. O beijo. Ela o beijou, como se o tivesse esperando. E eu? E nós? O cavaleiro que derrotou a medusa carregou para seu castelo a bela da calçada mágica. E assim que o beijo foi dado, as pedras viraram humanos e os corações, até então os únicos a terem vida, voltaram a ser pedras calcadas em cada um dos presentes. Seu Nicanor voltou-se para a tenda. Baixou a cabeça. Nem era tão bonita assim, a bela, pensou. Os outros, voltavam à vida. Qual vida?

– Seu Nicanor, me vê uma cervejinha.

(FIM)

Ouvindo: I can't stop loving you, Ray Charles (clique no play para ouvir)


Ray Charles - I Can't Stop Loving You


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